MPF recebe denúncia contra autor de pesquisa que negou segunda onda de Covid-19 no AM

Sede do Ministério Público Federal no Amazonas (Divulgação/MPF-AM)
Adrisa De Góes – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Tramita no Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) uma denúncia contra o pesquisador Henrique Pereira por “más práticas científicas”, autor do estudo que apontou “Manaus como primeira cidade a vencer a pandemia de Covid-19”, antes da segunda onda da pandemia, publicado no Boletim Objetivos de Desenvolvimento Sustentável Atlas Amazonas (ODS Atlas Amazonas), em 10 de maio de 2020. A denúncia se baseia no artigo científico Desinformação causou aumento da mobilidade urbana e fim do confinamento social antes da segunda onda da Covid-19 na Amazônia, no qual mostra que o estudo de Henrique Pereira levou instituições a flexibilizarem medidas sanitárias naquela época.

O documento está no Núcleo Cível da Procuradoria da República no Amazonas e foi protocolado no dia 8 deste mês. A REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA teve acesso à denúncia e consta que está assinada por seis cientistas, são eles: Alexandre Celestino Leite Almeida (Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ), Jeremias Leão (Universidade Federal do Amazonas – Ufam), Ruth Camargo Vassão (Instituto Butantan de São Paulo), Rodrigo Machado Vilani (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Unaí Tupinambás (UFMG) e Lucas Ferrante (Ufam).

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Na justificativa, o grupo de pesquisadores alega que o levantamento atentou contra a integridade científica e contra a tomada de decisão de gestores e da população durante o período pandêmico. “O denunciado atentou não apenas contra a integridade científica, mas contra a tomada de decisão durante a pandemia de Covid-19, induzindo erroneamente tanto decisões de gestores, como decisões individuais que resultaram na quebra precoce do isolamento social em Manaus”, diz um trecho da denúncia.

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Denúncia contra pesquisador Henrique dos Santos Pereira foi recebida pelo Núcleo Cível da Procuradoria da República no Amazonas no dia 8 de agosto (Reprodução/MPF-AM)

De acordo com os pesquisadores denunciantes, Henrique Pereira liderou publicações consideradas “sem crivo da comunidade científica” e, segundo eles, apresentou projeções “tendenciosas e manipuladas” à população, além da mídia e tomadores de decisões, como gestores da esfera pública e privada. Para o grupo, o levantamento induziu, em maio daquele ano, ao erro de que Manaus seria a primeira cidade a superar a pandemia de Covid-19, em maio de 2020.

Publicação da ODS Amazonas sobre remissão do novo coronavírus em maio de 2020

Cinco meses depois do estudo, a capital amazonense registrou um alto índice de transmissão do vírus, com o surgimento da variante P.1, conhecida como gama. À época, o colapso do sistema de saúde do Amazonas contribuiu para a morte de cerca de dez mil pessoas. A segunda onda da pandemia se deu, principalmente, no período de novembro de 2020 a junho de 2021.

‘Projeções tendenciosas’

A CENARIUM conversou com um dos autores da denúncia contra Henrique Pereira, o pesquisador Jeremias Leão, para entender os motivos que levaram o grupo a acionar o MPF. Ele é bacharel em Estatística pela Universidade Federal do Ceará (UFCE), mestre em Estatística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Estatística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)/Universidade de São Paulo (USP).

Jeremias trabalha ainda em modelos de observatório de sobrevivência/confiabilidade, modelos de análise de regressão e epidemiológicos. O pesquisador também é bolsista em produtividade e Pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), cuja participação representa a Região Norte.

À reportagem, Jeremias Leão explicou que o artigo científico revisado pelo grupo demonstrou “más práticas científicas” que contribuíram para a segunda onda de Covid-19 em Manaus. Ele afirma que a população em geral tende a acreditar na ciência, e é necessário zelar pelas boas práticas científicas, sobretudo, quando vidas dependem delas.

O pesquisador, doutor em Estatística, Jeremias Leão (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Jeremias continua: “Neste caso específico (estudo de Henrique Pereira), a desinformação foi pautada com base em projeções tendenciosas e manipuladas e influenciaram tanto decisões pessoais como de gestores públicos. Nós vimos estes informes do Atlas ODS serem divulgados pela grande mídia, por exemplo, como uma justificativa para a extinção do hospital de campanha antes da segunda onda”, ressaltou Leão.

‘Ausência de critérios’

O pesquisador ainda destaca que o estudo do grupo em que ele participou constatou que as análises estatísticas apresentadas por pelo menos dois boletins da ODS, que apontavam o fim da pandemia em Manaus e outras capitais amazônicas, reveleram números tendenciosos e ajustados para tentar comprovar a hipótese.

“O estudo demonstrou que estas informações sem base em nenhum critério científico, como revisão dos pares, influenciou tanto decisões pessoais como gestores, em Manaus, fornecendo uma desculpa atraente para aqueles que defendiam o fim do isolamento social na capital manauara e retorno escolar sem vacinas”, disse Jeremias.

Paciente com Covid-19 em tratamento em hospital de Manaus (Raphael Alves/Reprodução)

O doutor em Estatística ressaltou também que “nenhum dos pesquisadores conhecem o professor Henrique pessoalmente, ou seja, não é algo pessoal. Nossos resultados de um artigo científico apontam que estas más práticas científicas foram comedidas em pelo menos dois dos seus boletins, influenciando os rumos da pandemia em Manaus, e isto não pode ser ignorado”.

Candidatura ao Inpa

O pesquisador Henrique dos Santos Pereira é um dos quatro candidatos que vai concorrer ao cargo de diretor do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa). A candidatura dele para o comando da instituição foi confirmada pelo professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Eronildo Braga Bezerra, que é o presidente da comissão responsável pelo processo de seleção da lista de nomes para a definição do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Segundo o edital de N° 30, de 27 de junho de 2023, a escolha do novo diretor-presidente do Inpa vai ter origem em uma lista tríplice encaminhada ao MCTI pelo presidente da comissão, que vai ter o objetivo de identificar, nas comunidades científica, tecnológica e/ou empresarial, nomes que se identifiquem com as diretrizes técnicas e político-administrativas estabelecidas para cada instituição.

O pesquisador Henrique dos Santos Pereira (Reprodução/Internet)

Para Jeremias Leão, os dados da pesquisa coordenada por Henrique Pereira apresentaram uma hipótese sem fundamentação, à sociedade manauara, como algo real, além disso, ele pontua que a hipótese não era sequer considerada pela comunidade científica especializada. Ele enfatiza que o estudo foi divulgado “sem cuidado, como sendo, de fato, uma pesquisa científica, influenciando tanto decisões pessoais como de tomadores de decisão”.

“Precisamos entender que um cargo importante como este é de interesse público e de toda a sociedade, pois reverbera em tomadas de decisão e de informação para a sociedade, logo, é importante que seja ocupado com alguém com histórico de boas práticas científicas. Também precisamos lembrar que a manipulação de dados é uma prática inaceitável na comunidade científica e incompatível com um cargo deste porte”, concluiu o pesquisador Jeremias Leão.

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