Solidão: Como o racismo nega às mulheres pretas o direito ao afeto

Victor de Souza Rocha, de 21 anos, é suspeito de matar a ex-namorada, Karine Sevalho Lima, que tinha 19 anos e estava grávida dele (Foto: Reprodução)
Yana Lima – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – O brutal assassinato de Karine Sevalho Lima por Victor de Souza Rocha, que, segundo a Polícia Civil, ocorreu porque ele não queria um filho negro, reflete a perversidade enfrentada por mulheres pretas, que são objetificadas, sexualizadas, mas nunca consideradas dignas de afeto – fenômeno decorrente do racismo estrutural.

Segundo a Polícia Civil, Karine e Victor namoravam, mas ao descobrir a gravidez, ele passou a pressionar a jovem para que ela abortasse. Depois disso, ela foi encontrada morta em uma área de mata, no dia 26 de maio de 2022, com o rosto desfigurado, sinais de tortura e perfurações por todo o corpo. De acordo com as investigações, o autor, que foi preso na última terça-feira, 21, declarou que não queria um filho com características fenotípicas negras.

Mulheres pretas são objetificadas e têm negado o direito ao afeto (Foto: Freepik)

O caso é um exemplo extremo de como as mulheres pretas são desejadas para fins sexuais e pouco para a formação de família. O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 mostrou que as mulheres pretas (à época, 7% da população) foram as que menos se casaram. Ainda segundo o levantamento, 52% da população feminina preta não vivia em união estável, ou seja, era solteira, sendo que as mulheres pretas com mais de 50 anos nunca viveram um relacionamento estável.

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O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2013 mostrou, mais uma vez, que essas mulheres não possuem companheiro, ao pontuar que 51,1% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres pretas.

Outra forma de perceber como o racismo leva à solidão de mulheres pretas é pelo número de mães solo. De acordo com os dados do IBGE de 2020, o Brasil tem 11,4 milhões de famílias formadas por mães solo, sendo que a grande maioria delas é preta, ou seja, 7,4 milhões. Nessa mesma direção, o Mapa da Violência de 2015 demonstra que as principais vítimas de violência de gênero são as mulheres e as meninas pretas.

Sociedade machista

Para a psicóloga e professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Relatora Nacional de Direitos Humanos da Plataforma Dhesca, Iolete Silva, em uma sociedade machista que objetifica o corpo das mulheres e retira a humanidade delas, a crueldade com mulheres negras é ainda maior, o que faz com que haja um maior risco de essas mulheres se envolverem em relacionamentos abusivos.

“A pessoa que sofre racismo, ela fica sempre achando que o problema é com ela. Que ela é a responsável pelos problemas, pelos sofrimentos, pelas dificuldades. E essa falsa crença deixa a pessoa muito mais vulnerável à permanência em relacionamentos violentos, nos quais a mulher simplesmente é tratada como objeto”, avalia.

A psicóloga e professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Iolete Silva (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela destaca que esse processo de exclusão começa, muitas vezes, na família. “As mulheres das nossas famílias, que são mulheres negras também, não tiveram a oportunidade de acessar espaços onde se fortalecessem, onde tivessem a possibilidade de um fortalecimento da sua identidade. Então, elas são tão vítimas do racismo quanto a geração atual, só que a geração atual ainda tem a vantagem de estar num ambiente onde, pelo menos, se fala disso”.

A solução, para ela, está em uma educação antirracista, o que inclui a disseminação de informações que sustentem uma equidade racial e de gênero. No entanto, ela destaca que, para isso, são necessárias políticas afirmativas mais avançadas, que ofereçam respaldo financeiro e políticas de ingresso nas instituições, como as universidades.

“É preciso cuidar desde cedo, desde a infância, promovendo uma educação antirracista, aliada a uma política de equidade de gênero, para poder proteger as meninas, as mulheres dessas violências com esse recorte racial”, destaca.

Homicídios

O caso de Karine Sevalho Lima é investigado pela polícia como feminicídio, mas ainda está em andamento a investigação de uma possível classificação como crime de racismo. Ela pode entrar para uma triste estatística que demonstra o quanto ser mulher e preta no país é desafiador.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil no primeiro semestre de 2022. Foram 699 feminicídios até a metade do ano. Um aumento de mais de 3% em relação ao mesmo período de 2021. E quase 11% a mais do que no primeiro semestre de 2019. O mesmo recorte aponta que 62% das mulheres vítimas de feminicídio no país são negras.

São casos como o da jovem Debora da Silva Alves, de 18 anos, que também estava grávida quando desapareceu, no dia 29 de julho, após ir ao encontro do pai da criança, identificado como Gil Romero Machado Batista. O corpo dela foi encontrado enterrado em um terreno baldio no bairro Mauazinho, Zona Leste de Manaus.

O pai da criança foi preso no dia 8 de agosto no Estado do Pará e confessou que matou a jovem. A polícia informou que a justificativa dada por ele foi o fato de a jovem o pressionar para que ele assumisse a paternidade.

Debora da Silva Alves estava grávida de 8 meses quando foi assassinada (Reprodução/Redes Sociais)

Mesmo quando denunciam a violência sofrida, mulheres negras não estão a salvo. Se comparadas a mulheres brancas, as mulheres pretas, pardas, amarelas e indígenas têm 33% mais risco de morrer após denunciarem um caso de violência interpessoal. A conclusão é da tese de doutorado Violência por parceiro íntimo em mulheres no Brasil: da notificação ao óbito, defendida por Isabella Vitral Pinto em outubro de 2022 no Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG, que cruzou as notificações realizadas pelos serviços de saúde com os registros de óbito.

Edição: Yana Lima

Revisão: Gustavo Gilona

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