Escolas de madeira e sem merenda: a estrutura precária na rede municipal de educação do Amazonas

Crianças na Comunidade São João acompanham as aulas sentadas no chão. (Gabriel Abreu/ Revista Cenarium)

Gabriel Abreu — Da Revista Cenarium

EIRUNEPÉ (AM) — Um direito básico, garantido pela Constituição Federal, está sendo negligenciado pela gestão pública no município de Eirunepé, a 1.159 quilômetros de distância de Manaus. Os povos indígenas Kanamari e Kulina relatam descaso do prefeito da cidade, Raylan Barroso (DEM) — aliado do senador Eduardo Braga (MDB), pré-candidato ao Governo do Amazonas —, com a educação indígena, refletindo o retrato de um Brasil esquecido.

A REVISTA CENARIUM esteve na cidade, onde presenciou professores indígenas lecionando em uma escola improvisada e sem a mínima estrutura necessária, com alunos tentando aprender enquanto sentam no ‘chão duro’ de madeira de uma sala de aula que não possui paredes, cadeiras ou iluminação.

Na Comunidade São João vivem 80 famílias do povo Kanamari. De Eirunepé até a localidade leva uma hora de rabeta — um tipo de pequena embarcação, com um motor de propulsão, tradicionalmente usada na Amazônia. Cerca de 60 crianças e adolescentes da comunidade estão aptas a estarem na sala de aula, mas a escola improvisada não tem estrutura para receber os alunos. Os indígenas afirmam que Raylan Barroso não investiu o dinheiro repassado pelo governo federal para a educação indígena.

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À CENARIUM, a cacica Maria Rosimara Kanamari explicou que o local foi construído por moradores da comunidade, com dinheiro do benefício Auxílio Brasil, para abrigar outros indígenas. As 80 famílias que residem no local, e que recebem R$ 200 do benefício, doaram R$ 50 da renda, cada uma, para a construção do espaço. A “escola” ainda não possui o que é considerado básico para ensinar os estudantes, como cadeiras, lousas, materiais didáticos e muito menos oferece merenda escolar.

“Esse espaço foi construído para receber parentes (como os povos indígenas se referem a outros povos), não uma escola. Em 2018, o prefeito veio aqui, com uma equipe, dizendo que ia construir uma escola na comunidade, mas como vocês podem ver não tem nada. E tudo o que queremos é uma educação de qualidade para os nossos filhos”, pediu a cacica.

Mario Kulina, uma das lideranças do povo Kulina, disse que já ouviu promessas de diversos prefeitos e a situação nunca foi resolvida. Segundo ele, os políticos só “acertam ir nas comunidades” em época de eleição.

“Já passaram de dez ou 12 prefeitos que pouco fizeram por nós. Os professores têm formação, mas foi em 2014, no Projeto Piraywara. Agora, nunca mais teve. E não tem mais contratações. Precisamos de mais formação e atenção para os professores ensinarem nossos filhos. Quem está precisando dos professores são as crianças, na aldeia, não adianta o material ficar na cidade. Precisa ir para as aldeias para começar logo as aulas”, afirmou o líder indígena do povo Kulina.

Recomendação

Desde 2018, as lideranças dos povos Kanamari e Kulina reivindicam melhorias na área da educação. Eles pedem a contratação de professores indígenas, envio de material didático, merenda escolar, construção de escolas e capacitação dos professores. Segundo as lideranças, nas aldeias não existe nenhuma estrutura para estudo das crianças e adolescentes.

Em 2018, o prefeito de Eirunepé já havia assinado um acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) para que fosse realizado processo seletivo para agentes comunitários de saúde e para regularizar o pagamento dos professores indígenas e a entrega de merenda escolar, mas como constatado pela reportagem, o acordo assinado com o MPF e a DPU ainda não foi cumprido.

Consta, ainda, na recomendação, segundo o MPF e a DPU, que o município de Eirunepé devia também reformar a antiga casa da Operação Amazônia Ativa (Opan), que se disponibilizou a ceder o espaço à prefeitura, em caso de destinação do imóvel, para políticas públicas aos povos indígenas, para servir como casa de passagem aos indígenas que necessitam ir à sede da cidade. A reforma deveria ter sido concluída em 90 dias, mas nem saiu do papel.

Audiência constatou irregularidades

Uma audiência realizada pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), na sexta-feira e no sábado, 18 e 19, respectivamente, explanou diversas irregularidades, cometidas pela gestão municipal, com a educação dos indígenas. As lideranças dos dois povos relataram que as escolas que deveriam ser construídas pela prefeitura nem saíram do papel.

A audiência ocorreu na Câmara Municipal de Eirunepé depois que a Coordenação Indígena Kanamari do Juruá e Jutaí (Cikaju), associação indígena local que representa as duas etnias, pediu que a Famddi levasse uma comissão para que os indígenas fossem ouvidos. Os dois povos falam línguas distintas e estão dispersos em 29 comunidades, com população estimada em 5.189 habitantes.

A Cikaju aponta que desde que o prefeito de Eirunepé, Raylan Barroso (DEM), assumiu a prefeitura, em 2017, a educação indígena vem sendo desvalorizada e negligenciada no município. No documento enviado à coordenadora do Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia), Alda Rosa Tukano, ao qual a REVISTA CENARIUM teve acesso, a instituição afirmou que desde o início da gestão de Raylan Barroso as contratações de professores não foram mais feitas como em anos anteriores, quando os docentes eram chamados em abril e, a partir de maio até dezembro, recebiam o salário normalmente.

Conforme a Cikaju, não houve contratações em 2020 devido à pandemia e foi somente nos últimos três meses — outubro, novembro e dezembro — período de eleição, que os salários foram debitados em conta, mas, sem o recebimento do material didático e merenda escolar. Em 2021, segundo a associação, as matrículas só foram realizadas após “muita pressão dos indígenas”.

“A nossa educação está parada. É como uma canoa que sem motor ou sem remo não sobe o rio. Quando um professor não tem material, ele não consegue fazer a educação. A educação não funciona. Na educação, na saúde, na alimentação escolar, e também dos nossos territórios, temos que falar o que passamos para quem precisa ouvir, e esse poder público fazer o que deve ser feito pelos nossos direitos”, disse Carlos Kanamari, um dos coordenadores da Cikaju.

Mais de 70 indígenas dos povos Kanamari, Kulina e Deni participaram da audiência promovida pela Famddi (Gabriel Abreu/ Revista Cenarium)

Medidas judiciais

Para a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi) e o Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia), essa não é apenas a realidade da unidade escolar da Comunidade de São João. Outras escolas indígenas estão na mesma situação, na região.

Segundo o coordenador da Famddi, Gersem Baniwa, a frente deve ingressar com uma ação na Justiça Federal para que os problemas relatados sejam solucionados. Para ele, o problema na educação dos povos Kanamari e Kulina é antigo e agora é preciso rigor nas apurações dos fatos. “Queremos levar os relatos para o Ministério Público Federal e, se possível, para o Tribunal Internacional de Haia”, afirmou.

“São décadas e décadas dessa realidade muito precária, forte ausência do Estado e uma continuidade de violações de direitos dos povos indígenas. São povos que não conseguem, até hoje, os seus direitos básicos como educação, saúde e respeito. Aqui na região há muito preconceito, muita discriminação, muito racismo velado. Estamos neste lugar justamente para tentar achar soluções para que esses povos também passem a ser verdadeiros cidadãos brasileiros com um mínimo de dignidade, segurança e garantia, principalmente, por meio de políticas públicas”, afirmou Baniwa.

O advogado Eliesio Marubo, membro da comitiva da Famddi, que também participou da audiência, reforçou o relato de que há omissão do prefeito Raylan Barroso (DEM) com a educação dos indígenas.

“Nos próximos 15 dias nós estamos ingressando com uma ação. Vamos avaliar outras condutas na Justiça estadual para buscar responsabilização do gestor no sentido em que ele tem sido omisso nesses últimos anos e mais precisamente no último exercício financeiro, nesse ano civil que finalizou em 2021”, explicou o advogado.

Esclarecimentos

À REVISTA CENARIUM, o prefeito Raylan Barroso (DEM) informou que estão previstas a construção e a reforma de 14 escolas indígenas nas comunidades dos povos Kanamari e Kulina. Sobre a falta de material didático e a contratação de professores, Barroso disse que não houve contratações porque não ocorreram aulas em 2020 e 2021. Referente aos questionamentos a respeito do material escolar, o gestor os direcionou ao secretário de Educação do município, Júnior Lacerda.

O prefeito disse ainda que, para construir as unidades escolares, é necessário madeira e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não teria autorizado a extração do material dentro dos territórios indígenas.

“Primeiro, só sabe onde o sapato aperta quem calça. Estamos aguardando uma reunião do deputado federal Sidney Leite com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para que autorize a extração de madeira, nas comunidades indígenas, para a construção das escolas”, disso o prefeito à CENARIUM.

“Não consigo dar prazos e preciso que o Ibama me dê um prazo porque madeira de Eirunepé eu não vou levar. Para eu fazer qualquer coisa, eu preciso do plano de manejo. Eu não tenho uma única pessoa para comprar madeira legalizada”, concluiu o prefeito.

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