Processada há dois anos pelo MPF, Unir permanece sem banca de controle de cotas

Fachada da Universidade Federal de Rondônia, em Porto Velho. (Reprodução/Unir)

Iury Lima – Da Cenarium

VILHENA (RO) – A Universidade Federal de Rondônia (Unir) está na mira do Ministério Público Federal (MPF) desde 2019 por denúncias de que estudantes brancos estariam fraudando o ingresso na instituição, autodeclarando que pertencem aos grupos contemplados com cotas raciais: pretos, pardos e indígenas. O processo completou dois anos em outubro deste ano e, mesmo assim, a faculdade ainda não implementou uma banca de heteroidentificação, como pede a Justiça, para controlar o sistema de seleção. 

A banca deve ser composta por profissionais etnicamente diversos e qualificados para deliberar sobre o tema. Ao menos 12 estudantes, especialmente do curso de Medicina, foram listados na Ação Civil Pública (ACP) protocolada pelo MPF, sendo que todos eles teriam apresentado dados divergentes em outros processos seletivos. O documento aponta ainda que a universidade utiliza apenas a autodeclaração de candidatos para preencher tais vagas, o que, para a Justiça, abre brecha para irregularidades.

A sede da Universidade Federal de Rondônia (Unir), em Porto Velho. (Reprodução/Unir)

A denúncia

De acordo com o procurador da República em Rondônia, Raphael Bevilaqua, em entrevista à CENARIUM, a Justiça tomou conhecimento dos casos por meio de um perfil em uma rede social que passou a reunir os relatos de fraudes, bem como fotos, nomes e informações dos candidatos que agiam de má-fé. A partir daí, a ACP foi ajuizada.

“Realmente, muitas delas [as pessoas], o fenótipo era muito diferente do que, efetivamente, elas tinham declarado. Depois de muita discussão dentro do próprio movimento negro, concluiu-se que essas fraudes estavam prejudicando os destinatários da política de cotas, especialmente porque, no Brasil, a questão do preconceito é muito mais relacionada ao fenótipo da pessoa e não necessariamente apenas à herança genética”, explicou o procurador ao se referir às características físicas dos candidatos, como tons de pele, traços faciais, entre outras. 

O procurador da República Raphael Bevilaqua é o autor da ação contra a Universidade Federal de Rondônia. (José Cícero da Silva/Agência Pública)

“As pessoas, que têm o fenótipo negro, preto, pardo, sofrem preconceito. Por isso, elas devem ser destinatárias de políticas de cotas e, também, por questão de representatividade”, destacou Bevilaqua.

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O procurador da República e autor da ACP afirma que quando o sistema de cotas raciais não é direcionado para os reais destinatários dessa política pública, a instituição responsável está, na verdade, fingindo cumprir a legislação.

“A  ideia é que a gente consiga fazer com que a Unir entenda qual é o sentido da política de cotas, que ouça as vozes das pessoas que são as destinatárias das cotas e cumpra a lei e a Constituição para que, efetivamente, haja pessoas pretas e pardas frequentando os bancos das universidades para ‘colorir’, de fato, o ambiente universitário, e não só ficar no ‘conta de fadas’, no finge que faz”, criticou. 

Reparação histórica

Presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Amazonas (OAB-AM) no Amazonas, Carolina Amaral aponta que a acessibilidade de pessoas negras às universidades, ao mercado de trabalho e à ascensão social são direitos que foram cerceados por conta da escravidão e dos seus efeitos, além da dita “escravidão moderna”.

“As cotas são uma medida para reparar esses danos, para que pessoas negras tenham oportunidade de igualdade para ingresso no ensino superior, para o ingresso no serviço público, para que eles possam concorrer com o que a gente chama de paridade de armas, a fim de promover equidade racial. Não é uma medida que vai ser eterna, mas é uma medida que deve durar o tempo que for necessário para que haja essa equidade, de fato”, defendeu Amaral.

A presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-AM, Carolina Amaral, defende a política de cotas como meio de promoção à equidade racial. (Reprodução/CAA-AM)

Carolina Amaral também defende a criação de bancas de heteroidentificação, mecanismo tão crucial quanto a própria política de cotas. “O fato da banca de heteroidentificação ser composta por pessoas com letramento racial, ou seja, pessoas que estudam, pessoas que têm conhecimento e que podem fazer essa verificação, é extremamente necessário, porque se você contar só com a autodeclaração, você vai ter que contar com a boa-fé alheia e, infelizmente, os casos de fraudes às cotas não são incomuns”, explicou.

“Não basta que você tenha um avô negro, um pai negro… você tem que, de alguma forma, ter sofrido discriminação racial e que essa discriminação tenha te cerceado de direitos, tenha de impedido de acessar algumas oportunidades, tenha, de alguma forma, obstaculizado o teu acesso à educação, o teu acesso ao serviço público”, complementou a especialista.

Para ela, “não há justificativa plausível para que, em 2021, as universidades não tenham bancas de heteroidentificação”.

O que diz a Unir?

Por meio de nota, a Universidade Federal de Rondônia disse que reserva 55% das vagas para candidatos cotistas, entre pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiências físicas, além de avaliar critérios socioeconômicos.

No entanto, assumiu que não possui, até hoje, uma banca de heteroidentificação, que continua aceitando a autodeclaração como critério definido por lei e que acompanha o processo movido pelo MPF. A Unir diz ainda que, independentemente da ACP, busca implementar um grupo formado pela comunidades acadêmica e externa para discutir e avançar sobre o tema.

A Lei de Cotas

A Lei nº 12.711 foi criada em 2012 e também estabelece que as faculdades e institutos federais devem destinar metade das vagas para estudantes que saíram da rede pública e parte desses 50% para candidatos cotistas em processos seletivos anuais.

Sancionada em agosto daquele ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

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