Com dez Unidades de Conservação sob ataque em RO, reservas se tornam campo de batalha entre grileiros e fiscalizadores

Caminhão e trator flagrados dentro da TI Karipuna durante sobrevoo realizado em fevereiro de 2019 (Greenpeace)

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Dez das 49 Unidades de Conservação (UCs) do Estado de Rondônia estão sob ataque de grileiros que transformam as reservas de uso sustentável e de proteção integral em verdadeiros campos de batalha, protagonizados pelo embate entre os agentes ambientais da Polícia Militar (BPA/PM-RO) e da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam-RO) e os invasores. No episódio mais recente, ocorrido no último sábado, 4 de dezembro, um servidor da Sedam foi atingido no braço por um disparo de arma de fogo, durante operação de fiscalização em conjunto com a PM, no Parque Estadual de Guajará-Mirim (PEGM), uma das reservas quase extintas por lei estadual de autoria do governador Marcos Rocha (PSL).

A CENARIUM recebeu denúncias e teve acesso com exclusividade a fotos e documentos que comprovam o avanço da grilagem em áreas protegidas.

Barracão em área invadida do Parque Estadual de Guajará-Mirim, em Rondônia. (Arquivo pessoal/Divulgação)

Invasão e confronto no Parque Estadual de Guajará-Mirim

O boletim de ocorrência lavrado pela Polícia Militar como tentativa de homicídio contra um dos servidores da Sedam detalhou que 18 pessoas participaram da operação de fiscalização de rotina, sendo quatro delas ligadas à Secretaria de Meio Ambiente e outras 14, agentes militares. Foram cerca de 10 minutos de disparos de armas de fogo contra o grupo, logo que os invasores se deram conta da presença das forças enviadas pelo governo estadual.

“Essas pessoas utilizam esse mecanismo para despistar a atenção. Foram, mais ou menos, 10 minutos de tiros com calibres pesados. Tinha metralhadora, tinha fuzil, e, graças a Deus, apenas um servidor foi alvejado, mas a bala pegou no braço. O tiro entrou de um lado e saiu do outro”, detalhou, à reportagem, um dos participantes da ação, de forma anônima, por medo de perseguições e represálias.

Ainda segundo o boletim, os militares reagiram à injusta agressão com outros disparos. Tudo aconteceu às margens do Rio Oriente, dentro de uma propriedade, nos limites do PEGM. “(…) Foram disparados fogos de artifício, como alerta da chegada da força policial. Foi visualizado um indivíduo, de estatura mediana, com camiseta azul, na margem oposta do rio onde estávamos, sendo que após a aparição desta pessoa foram realizados disparos de arma de fogo com armas semiautomáticas, de forma aleatória, porém todos em nossa direção, momento em que nos abrigamos, para tentar verificar de qual local, saíam os disparos. A partir daí, os tiros começaram a se intensificar”, diz o documento. 

A fonte anônima ouvida pela CENARIUM diz que os invasores formam “pessoal com treinamento especializado” e que “atiraram para matar”. “Tem pessoas poderosas por trás. A mesma operacionalização que fazem em uma, fazem em todas as Unidades de Conservação. Usam o povo (invasores) como massa de manobra e fazem promessas de que as áreas passarão por processo de assentamento. As pessoas entram nas UCs porque têm interesse na terra. A intenção é derrubar tudo e queimar, descaracterizando as Unidades de Conservação”, denunciou. “Os invasores ainda não se retiraram, eles ainda estão fazendo uma forte pressão na Unidade de Conservação, por isso ainda se fala em uma recuperação da área, de fato”, acrescentou.

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Mapeamento

A Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental detalhou, em relatório, após o confronto, que a ocupação é formada por um grupo de, aproximadamente, 100 pessoas e que o objetivo é “tomar posse dos ‘lotes’ a eles destinados, que já estariam todos georreferenciados para seus respectivos ‘donos’”. A Sedam diz ainda que a abertura de linhas é realizada por um trator que, segundo os grileiros, só deixará de ser usado, “após a conclusão dos trabalhos”. Além disso, um acampamento foi montado no único acesso à localidade para “impedir a entrada do poder público”. O grupo estaria viabilizando a construção de residências, de modo a “possuir maior respaldo legal”, prevendo a chegada de mais de 200 famílias. 

“No local, como é comum nesse tipo de situação, existem diversas mulheres e crianças na linha de frente, com claro objetivo de usá-las como escudo humano, responsabilizando a equipe, caso fosse preciso fazer uso da força. Uma ação muito complexa e difícil de se executar sem o apoio da polícia especializada, com equipamentos como escudos e materiais não letais”, esclarece a pasta, afirmando não contar mais com o apoio da Polícia Civil e a ausência de forças especiais. 

Foto de parte do acampamento feita em sobrevoo um dia após o ataque. (Arquivo pessoal/Divulgação)

Ao todo, o Estado de Rondônia tem 49 Unidades de Conservação, dentre elas as de uso sustentável, como no caso das reservas extrativistas e de proteção integral, como é o PEGM. Delas, dez estão sob ataque, sendo cinco em situação mais crítica:

  • Parque Estadual de Guajará-Mirim (Decreto Nº 4575, de 23 de março de 1990);
  • Estação Ecológica de Samuel  (Decreto Nº 4247, de 18 de julho de 1989);
  • Reserva Extrativista Jaci-Paraná (Decreto N.º7335, de 17 de janeiro de 1996);
  • Reserva Extrativista Rio Preto Jacundá (Decreto Nº7336, de 17 de janeiro de 1996);
  • Reserva extrativista Aquariquara (Decreto n° 17106 de 04 de setembro de 1995).
Trecho do relatório da Sedam disponibilizado à CENARIUM. (Divulgação)

Faltam recursos

Outro fator determinante para a falta de eficácia das ações realizadas pelo governo estadual com o objetivo de coibir o avanço do desmatamento em áreas protegidas, de acordo com a Sedam, é a escassez de recursos financeiros, sendo que apenas nas operações de fiscalização no Parque Estadual de Guajará-Mirim, já foram investidos quase R$ 1,2 milhão. O valor foi destinado a diárias de servidores civis e militares, aquisição de combustíveis, manutenção de veículos e apoio aéreo de helicópteros, aponta a secretaria.

História que se repete

Esta não é a primeira vez que invasores armam emboscada para grupos de fiscalização. Em maio de 2020, mais de 50 pessoas encapuzadas cercaram uma viatura, enquanto policiais militares monitoravam uma área dentro do parque estadual, na região do distrito de Jacinópolis, no município de Nova Mamoré, a 280 quilômetros de Porto Velho. Ninguém se feriu, naquela ocasião.

Índices dispararam

Não por acaso, o desmatamento saltou dentro das UCs, principalmente nos territórios reduzidos (e ainda não recompostos) pela Lei Complementar Nº 1.089/2021, criada pelo governador Marcos Rocha e aprovada na Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO). O decreto foi considerado inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Rondônia, há cerca de duas semanas. No entanto, o rastro de devastação apareceu: o desmatamento aumentou 2700% na Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná e  300% dentro do Parque Estadual de Guajará-Mirim, após a redução de quase 220 mil hectares, segundo o WWF-Brasil.

O motivo apontado pelo governo estadual foi a existência de famílias no interior das reservas e a criação de mais de 20 mil cabeças de gado no PEGM visando à “regularização” da posse para grupos instalados, há cerca de 20 anos. 

Veja como ficaram as áreas da Resex Jaci-Paraná e do PEGM. (Arte: Catarine Hak/Cenarium)

“O PEGM está sendo atacado por quadrilhas da indústria da grilagem e, recentemente, teve a área reduzida com apoio do governador e de toda a bancada estadual (…) Após o explícito apoio político, explodiu a invasão na Unidade de Conservação, assim como de outras do Estado. A invasão do PEGM coloca em risco o “Mosaico Central de Rondônia” e indígenas isolados, já que as quadrilhas já têm estradas abertas do parque para o interior da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau”, revelou o tecnólogo em Gestão Ambiental e conselheiro da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Edjales Benicio. 

O tecnólogo em Gestão Ambiental e conselheiro da Kanindé, Edjales Benicio. (Arquivo pessoal/Reprodução)

Atitude impensada

Para a presidente da Associação Kanindé, a indigenista Ivaneide Cardozo, a lei complementar que reduziu as UCs foi “impensada”. “A redução do parque pelo governador e pela Assembleia Legislativa resultou num aumento do desmatamento e fez com que os invasores e os grileiros se achassem empoderados o suficiente para atacar. Isso é o resultado dessa ação impensada do governo e dos políticos locais de diminuir Unidades de Conservação”, declarou à CENARIUM

“O que a gente tem visto é que há uma promoção de quadrilhas que promovem a grilagem de terras. E isso tem trazido um monte de irregularidades que, por trás, tem quem apoie. Para invadir parques, Terras Indígenas e Unidades de Conservação, há um financiamento por trás, pois precisa ter muito dinheiro para fazer isso, para comprar gasolina, para ter motosserras, alimentação (…) então há todo um aparato por trás”, acrescentou Cardozo.

A indigenista e presidente da Associação Kanindé considera “impensada” a Lei Complementar Nº 1.089/2021. (Gabriel Uchida/Reprodução)

Genocídio à espreita

A ausência de recomposição das áreas afetadas pela redução por força de lei, põe em risco as populações tradicionais, tendo em vista o impacto causado às áreas vizinhas das duas UCs, principalmente para as Terras Indígenas Karipuna, Igarapé Lage e Uru-Eu-Wau-Wau, que formam um grande corredor etnoambiental (um dos mais importantes de Rondônia), além de que circulam, dentro do PEGM, indígenas de grupos isolados.

“O risco para os índios isolados é o genocídio. Essas invasões e o desmatamento podem promover o genocídio, a morte desses povos. A lei foi considerada inconstitucional e, o que a gente espera, é que o governo do Estado tire esses invasores de dentro do parque e que faça a recomposição da área, além de que esses invasores sejam responsabilizados pela Justiça a recompor as áreas que eles degradaram, que eles destruíram e que eles desmataram. Além disso, que a Sedam promova um monitoramento em várias partes do parque, principalmente nessas áreas que acumulam mais ataques por invasão. Esperamos que cumpram o papel constitucional”, finalizou Ivaneide Cardozo.  

Sem respostas

Procurado pela CENARIUM, o governo de Rondônia não informou quais serão as próximas etapas de repressão às invasões alimentadas pela delimitação dos territórios protegidos, bem como não respondeu sobre como ocorrerá a recomposição das Unidades de Conservação. A Polícia Militar do Estado também não respondeu aos questionamentos da reportagem.

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